Afinal estar morto não custa assim tanto. É uma sensação estranha, esta de não ter frio nem sentir a chuva na cara enquanto caminhas. Mas não custa assim tanto. Pelo menos, a dor no ombro que há meses que nao me passava, já não me incomoda. É como tudo: uma questão de hábito. E eu sempre soube que não poderia sobreviver muito mais tempo assim. E não há nada de demasiado dramático nesta condição. Há que ser prático nestas matérias: se o acordar se tornou demasiado pesado, ou se a vontade de seguir em frente passou a ser nenhuma, se as pálpebras pesam toneladas e deixaste de ter lágrimas, se te ris por conveniencia e deixaste de sentir, então, estás morto. Reconhece-o. Aceita-o. E depois sai lá para fora e caminha no meio da gente como se fosse normal. Há mais gente morta por aí, mas ainda nao deram conta. Gente a quem tudo passa ao lado de tudo, gente que não reage, gente que vê através dos outros, gente que não te ouve ainda que lhe grites aos ouvidos, gente que não esboça uma reacção ainda que os abanes. Nem com palavras nem com gestos. Seguem sempre numa única direcção, sem nunca se desviar, indiferentes a quem (e ao que se) passa à sua volta.
Às vezes tenho saudades de viver. Sinto falta sobretudo dos cheiros, com que me habituei a identificar momentos e pessoas, e que agora nao consigo sentir. Às vezes até tenho saudades de quando me deitava na cama, de mãos à volta da barriga e joelhos encolhidos a encharcar-me de lágrimas que pareciam não ter fim. Às vezes (imagina!) até sinto falta do sufoco, da falta de ar e da sensação de que o coração me saía do peito, arrancado com violencia. Mas depois passa. Porque agora já não há nada para arrancar. E não é mau de todo. Estar morto não custa assim tanto.
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