"Mãe, porque é que os bons ganham sempre?"
A pergunta era frequente e desconfio que ela nunca lhe soube responder com certeza. Olhava para a televisão, com os olhos pequeninos e curiosos, onde patifes e superheróis lutavam todos os dias e franzia o sobrolho. Naquele quadrado, os bons, ensanguentados, doridos e espezinhados, levantavam-se mesmo quando parecia que tudo estava perdido e no último momento iam buscar forças sabe-se lá onde para darem cabo dos maus. Era assim, uma e outra vez. E ele franzia o sobrolho.
"Mãe, porque é que os bons ganham sempre?"
Alguma coisa ali não batia certo e ele já o sabia, apesar da distancia que ia do chão à sua cabeça ser pouco mais de um metro. Sentado no chão, em cima da sua manta, com meia dúzia de brinquedos à volta, fingia que se contentava com as respostas dos adultos, mas continuava a franzir o sobrolho. Até porque lá na escola havia meninos bons que apanhavam forte e feio do espertalhão da turma, que em vez de cérebro tinha banha (o que aos 7 anos é tão importante como ter músculos aos 20). Um dia haveria de descobrir.
"Porque é que os bons ganham sempre?"
Ele ainda não sabia mas
haveria de ser um dos bons. Desses que se escondem em mil carapaças e que fingem que para eles está tudo bem e tudo vai dar ao mesmo enquanto, por dentro, o coração encolhe, encolhe, até ficar do tamanho de uma ervilha.
Ele haveria de ser dos bons. Dos que infernizavam a vida da irmã mais nova, dos que a enxotavam quando estavam com os amigos e se riam do seu medo insano de cães. Dos que usavam o seu pânico por cobras para lhe dizer que debaixo da cama dela havia um ninho de víboras e obrigá-la a dormir com os joelhos no pescoço e acordar com as pernas dormentes. Dos que a ensinavam a andar de bicicleta e a ajudavam a levantar-se sempre que ela caía.
Ele seria dos bons. Dos que riem com gargalhadas largas e bem dispostas, dos que fazem cócegas no espírito dos outros quando estão presentes. Dos que abraçam e gostam e cuidam.
Dos bons. Dos que sonham sem acreditarem que também sonham, dos que choram ainda que poucas vezes o reconheçam, dos que têm o coração do tamanho do mundo e nem o sabem.
E ele é dos bons e não o sabe.Mas já descobriu o segredo que o intrigou meia vida. Só não percebe o que de tão difícil havia na explicação de tal coisa.
"Na televisão os bons ganham sempre, porque na vida real isso quase nunca acontece."