num "tablao flamenco".
Nada a fazer...
(it never is)
Às vezes há que saber ceder. Olhar à volta e perceber que nem sempre tudo é perfeito à primeira. Que as pessoas e as coisas e os momentos precisam de tempo para crescerem, para se moldarem à realidade, para perceberem o que podem ser se os deixarmos acontecer. Às vezes há que pôr o orgulho de lado. E as certezas absolutas. E as frases feitas. E o medo de voltar a cair. E arriscar. Com medo, com pânico, com sufoco e aperto e esse nó na garganta que não se desfaz. Mas ainda assim, arriscar. E lutar contra todas as coisas más. Fechar os olhos e pensar com afinco que pode correr bem, que é tempo de sermos positivos e de nos deixarmos levar.
(E esse momento, que durava só uns escassos segundos na realidade, na minha cabeça demorava uma eternidade, tal a exactidão com que era capaz de descrever cada movimento, cada expressão.)
E finalmente o corpo a ceder, ainda pesado, e as pálpebras a abrir, e os olhos cravados no tecto.
“Acorda”
E um sorriso que nem eu percebia e ficar mais duas horas assim, acordada, com o edredão até ao nariz e os olhos no tecto, à espera que o despertador tocasse.
E hoje voltei a sonhar contigo. Voltei a acordar com a boca seca e o corpo espesso. A reclamar descanso. E o cérebro sem lhe obedecer, a perder-se na tua imagem e nos teus braços que me apertavam com força.
E voltaste a estar a cinco centímetros de distância da minha boca. Nessa espécie de tortura boa que só nós entendíamos e que éramos capazes de prolongar até ao limite do impossível.
Esta noite sonhei contigo, dizia eu. Vinhas e era tudo fácil e perfeito, como sei que seria se viesses de facto. Vinhas e eu voltava a ser a miúda de antes, cheia de sonhos e ingénua e com a capacidade de acreditar intacta.
(Porque sempre me fizeste bem. Quando vinhas, quando estavas. Quando esquecias o mundo e aceitavas sem reservas que te sentias bem comigo.)
Hoje sonhei contigo e queria escrever-te outra coisa. Queria escrever-te qualquer coisa diferente, mais nova, menos batida. Mais racional. Mais distante e mais fria. Queria escrever-te o que devo, mas só me sai o que me apetece. Só me sai o que sinto. Só me sai que te adoro.
Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria. Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo". O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios. Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem. A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam "praticamente" apaixonadas.
Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço. Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do "tá bem, tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas.
Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo? O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso "dá lá um jeitinho sentimental".
Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade. Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar. O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto. O amor é uma coisa, a vida é outra.
A vida às vezes mata o amor. A "vidinha" é uma convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não é para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende.
O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o amor que se lhe tem.
Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir. A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a vida inteira, o amor não. Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também.
Miguel Esteves Cardoso
"Elogio ao Amor" - Expresso
...é mesmo isto.
E tudo o que for menos do que isto não vale a pena.
Às vezes tenho saudades de viver. Sinto falta sobretudo dos cheiros, com que me habituei a identificar momentos e pessoas, e que agora nao consigo sentir. Às vezes até tenho saudades de quando me deitava na cama, de mãos à volta da barriga e joelhos encolhidos a encharcar-me de lágrimas que pareciam não ter fim. Às vezes (imagina!) até sinto falta do sufoco, da falta de ar e da sensação de que o coração me saía do peito, arrancado com violencia. Mas depois passa. Porque agora já não há nada para arrancar. E não é mau de todo. Estar morto não custa assim tanto.